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Entre o medo do novo e a coragem de recomeçar

 


Há momentos na vida em que permanecemos onde não queremos mais estar. E isso não acontece por ingenuidade ou falta de percepção — pelo contrário, às vezes carregamos a consciência de que algo não nos faz bem muito antes de conseguirmos agir. Mas saber não basta. Entre o entendimento e o gesto existe um abismo feito de medo, de cansaço, de inseguranças acumuladas ao longo dos anos. Permanecer, mesmo no que dói, pode parecer mais suportável do que caminhar em direção ao que não conhecemos. O familiar oferece um tipo de abrigo, ainda que frágil: ali, ao menos, sabemos o que esperar. E esse “saber” funciona como uma armadura emocional que evita o confronto com a vertigem do novo.
 
É nesse intervalo entre o desconforto e a decisão que surgem justificativas que tentam organizar o caos interno. “É pelas crianças”, “é pela casa”, “é pela estabilidade” — são frases ditas com convicção, mas que muitas vezes escondem outras verdades mais profundas. Tomamos os outros como escudos porque assumir a responsabilidade pelo próprio movimento envolve um certo desnudamento: exige dizer a si mesmo que o medo de recomeçar é maior do que gostaríamos de admitir. E esse reconhecimento pode doer. Atribuir ao amor pelos filhos aquilo que, no fundo, é medo, é uma forma de se proteger da culpa, de evitar o peso de confessar que ainda não conseguimos escolher por nós. Mas essa sinceridade interna, por mais desconfortável que seja, é o primeiro passo para qualquer transformação real.
 
Recomeçar não é um gesto simples. Exige um trabalho silencioso, profundo e cansativo: desapegar-se de rotinas, atravessar noites difíceis, abrir espaço para novas perguntas, reorganizar a própria identidade que se estruturou ao redor de uma vida que já não cabe. Há um luto pelo que se deixa para trás e, ao mesmo tempo, um vazio assustador pelo que ainda não tomou forma. O novo cobra energia, vulnerabilidade e abertura. Por isso adiamos, esperando uma hora ideal que nunca chega. A vida, no entanto, não se reorganiza sozinha; ela pede participação, entrega, disposição para o incerto. E enquanto não aceitamos isso, seguimos vivendo quase em silêncio com a sensação de que algo dentro de nós está pedindo mudanças que insistimos em adiar.
 
Os filhos, muitas vezes, se tornam a razão que damos ao mundo — e a nós mesmos — para justificar a permanência. Mas é preciso olhar com honestidade para essa dinâmica. Eles não pediram para carregar o peso de nossas hesitações. Nem devem. Crescem melhor quando observam adultos que assumem suas escolhas, que enfrentam seus medos, que se responsabilizam por sua própria felicidade. A coragem também educa. Um filho aprende muito mais com um exemplo de verdade e movimento do que com a manutenção de uma vida que já se esvaziou. É preciso delicadeza para perceber que amar não é sacrificar-se até desaparecer, mas encontrar caminhos onde nós também possamos respirar.
 
Ficar no que é ruim, mas conhecido, oferece a ilusão de controle. Sabemos como agir, como evitar conflitos, como navegar dentro do caos doméstico ou emocional que se tornou rotina. Esse “controle”, porém, não é liberdade; é apenas sobrevivência organizada. E viver não pode ser apenas sobreviver. Sair exige um outro tipo de força, uma força menos rígida e mais íntima: a força de aceitar não saber tudo, de caminhar mesmo com o coração acelerado, de se abrir ao risco de que as coisas podem dar certo — ou diferente do esperado. Mas é justamente aí que mora a possibilidade de uma vida mais verdadeira.
 
Quando reconhecemos que a responsabilidade é nossa — e não dos filhos, nem das circunstâncias externas — algo começa a se reorganizar internamente. Esse reconhecimento não gera respostas imediatas, mas abre espaço para que as perguntas deixem de ser temidas e passem a ser escutadas. A vida se desloca quando paramos de explicar nossa imobilidade e começamos a nomear nosso desejo de movimento. O novo, antes visto como ameaça, passa a ser compreendido como caminho. Um caminho que se inicia sem trombetas, sem grandes gestos, mas com um passo íntimo e invisível: o de assumir que merecemos uma vida que não seja apenas suportável, mas possível, respirável, viva.

Daniel Lima | @daniellima.pe
 
 

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