Jack, personagem do filme Todos os Tons do Prazer, é uma figura que nos convida a pensar sobre os limites entre o prazer, o poder e o sofrimento psíquico. Sedutor, envolvente e aparentemente seguro de si, ele organiza sua vida e seus vínculos em torno de uma busca incessante por excitação e controle. A relação que estabelece com Victoria, marcada por sedução e dominação, permite entrever não apenas um modo de se relacionar com o outro, mas também uma estrutura subjetiva que opera pela recusa da falta e pela negação do outro como sujeito de desejo. É nesse ponto que a psicanálise pode nos ajudar a escutar o que se passa por trás da superfície fascinante desse personagem.
A primeira hipótese que se impõe à escuta psicanalítica é a de um funcionamento narcísico. Jack parece precisar constantemente reafirmar seu valor e seu poder, não apenas por meio de conquistas materiais, mas, sobretudo, pela maneira como exerce domínio sobre o outro. Sua relação com Victoria não se sustenta no reconhecimento da alteridade, mas na transformação da parceira em objeto de excitação e adoração. Esse tipo de funcionamento, descrito por Freud em seus textos sobre o narcisismo e aprofundado por autores como André Green, costuma se formar em sujeitos que, em algum momento de seu desenvolvimento, não puderam internalizar um objeto suficientemente bom, o que gera um vazio que exige constante preenchimento.
Nesse sentido, o outro não é percebido como alguém com desejo próprio, mas como um espelho que deve refletir a imagem idealizada do sujeito. A sedução de Jack tem menos a ver com o desejo de encontro e mais com a necessidade de confirmar sua superioridade e sua onipotência. Sua relação com o prazer é atravessada por uma urgência que beira a compulsão. A excitação, mais do que fim em si mesma, funciona como defesa contra sentimentos de vazio, perda e até angústias mais primitivas de aniquilamento. Freud, em Além do Princípio do Prazer, já apontava para esse circuito repetitivo de busca de prazer que, paradoxalmente, não leva à satisfação, mas à repetição de experiências potencialmente destrutivas.
A essa organização narcísica se somam traços de funcionamento perverso. Na perspectiva psicanalítica, a perversão não é entendida como um desvio moral ou sexual, mas como uma estrutura subjetiva na qual o sujeito constrói uma cena fixa, uma fantasia rígida que desmente a castração e sustenta a ilusão de completude. Jack encena com Victoria um mundo no qual ele é o mestre absoluto do prazer, onde tudo gira em torno de sua fantasia de controle e poder. O erotismo, nesse caso, funciona como palco de uma cena inconsciente onde ele nega a vulnerabilidade e impõe um sentido total à experiência do outro.
O que se percebe, portanto, é que Jack não suporta o vazio, a perda ou a limitação. Sua compulsão à excitação e seu uso do outro como objeto são tentativas de tamponar essas angústias. A intensidade das experiências propostas por ele — sempre ultrapassando os limites do que é confortável ou consensual — denuncia, mais do que um desejo de liberdade, uma necessidade desesperada de não entrar em contato com afetos dolorosos. Em termos clínicos, poderíamos pensar que Jack estrutura seu funcionamento psíquico com base em defesas maníacas, que negam a perda e a dor, mantendo o sujeito num estado artificial de euforia e domínio.
Mesmo diante de tamanha rigidez, é possível entrever, sob o brilho da sedução, o sofrimento psíquico. O narcisismo patológico não é expressão de força, mas de uma profunda fragilidade do eu, que precisa se sustentar em imagens idealizadas e no controle absoluto do outro. Jack, ao não reconhecer a alteridade de Victoria, também se impede de viver um laço verdadeiramente afetivo, marcado pela troca simbólica. Ao organizar o vínculo como uma cena fechada e repetitiva, ele aprisiona a si mesmo em uma fantasia que, embora excitante, é também solitária e exaustiva.
Se pensarmos em termos diagnósticos mais formais, como os propostos pela psiquiatria psicodinâmica, poderíamos dizer que Jack apresenta um transtorno de personalidade narcisista com traços perversos e dissociais. Seu comportamento se encaixa nas classificações do DSM-5-TR e da CID-11, que reconhecem o impacto desse tipo de funcionamento nas relações interpessoais e no contato com a realidade emocional. Mas, mais do que um rótulo, importa compreender que sua estrutura subjetiva é uma tentativa — ainda que disfuncional — de evitar o sofrimento psíquico profundo.
Por fim, Jack é um personagem que encarna, de forma intensa, a luta psíquica entre desejo, falta e defesa. Sua história nos lembra que por trás do fascínio que certas figuras exercem pode haver uma organização subjetiva marcada por angústias primárias, defesas rígidas e uma busca incessante por um prazer que, ao negar a castração, acaba também por impedir a possibilidade de uma verdadeira ligação com o outro. A psicanálise, ao escutar essas formações do inconsciente, nos ajuda a ver além do visível, abrindo espaço para que possamos pensar os modos — muitas vezes dolorosos — pelos quais o sujeito tenta sustentar sua existência.
Daniela Lima
@daniellima.pe
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