Há estantes que são mapas do mundo interior. Não são apenas tábuas e lombadas: são topografias da alma. Diante de uma delas, ricamente povoada, sinto que cada livro magnetiza um pedaço do que somos — memórias, feridas, desejos, perguntas que insistem em voltar. E, quando um pequeno Freud sentado observa um divã em miniatura, a cena inteira se transforma numa metáfora: a leitura como análise, o leitor como analisando, a página como espaço clínico onde o segredo arrisca virar voz.
Ler é uma forma de respirar por dentro. É abrir janelas num quarto sem ar, deixar que entre um vento que carregue para longe o pó dos dias e traga um cheiro de mundo. Quando a vida aperta, um livro pode oferecer o tempo que nos falta: um tempo de espera, de elaboração, de nomeação. A saúde mental, tantas vezes capturada por urgências e rótulos, encontra na leitura um ritmo diferente, quase artesanato. Porque ler é aprender a escutar — o texto, o outro, e sobretudo a si mesmo. É afinar o ouvido para nuances e pausas, onde a psicanálise reconhece seus próprios alicerces.
As obras de Freud, alinhadas como quem organiza tijolos de uma casa interior, são um convite a reconhecer que o pensamento também sonha, e que o sonho pensa mais do que supomos. A psicanálise nos lembra que não somos transparentes a nós mesmos; que há um subterrâneo pulsando sob a superfície do “eu”. A leitura, por sua vez, oferece um método silencioso para descer escadas. A cada capítulo, um lance a mais rumo aos corredores onde habitam as repetições, as defesas, as cenas primordiais. Não se trata de decifrar-se de uma vez por todas — ninguém se aprisiona numa definição que baste — mas de ensaiar uma convivência mais honesta com aquilo que nos move.
Há livros que funcionam como faróis em noites de neblina. Um título sobre ansiedade e medo pode oferecer nomes, mapas, pequenas bússolas. A nomeação, ainda que imperfeita, alivia. Onde antes havia uma massa amorfa, surge um contorno. A clínica sabe disso: dar palavra ao indizível muda o peso do que carregamos. Na estante, ao lado do clínico, convivem outras vozes que ampliam o enquadramento do sofrimento. Um ensaio sobre ideologia, por exemplo, lembra que o que chamamos de “eu” também é atravessado por estruturas sociais; nossas dores têm história, classe, gênero, raça. Uma autora que projeta futuros maiores para um país mostra que esperança também se aprende, se cultiva, se compartilha — um antídoto contra o desânimo que as narrativas cínicas insistem em semear.
E a literatura? Ela nos treina em humanidade. Emma Bovary nos oferece um espelho estranhamente familiar para os abismos do desejo, as armadilhas do ideal. Kafka, com a sua metamorfose, nos mostra que às vezes acordamos insetos em casas impecáveis — e que o desconcerto também merece linguagem. Ler ficção é ensaiar existências. É pedir emprestadas outras vidas para ampliar a respirabilidade da nossa. A saúde mental agradece cada vez que o imaginário encontra rotas novas para nomear o vivido.
No meio desse conjunto heterogêneo, um Parthenon em miniatura parece lembrar que pensamento é arquitetura. Erguer uma mente habitável exige colunas: tempo, curiosidade, silêncio, diálogo. Exige também diálogos em curso — revistas, debates, escolas que se revezam na construção de perguntas melhores. Talvez seja essa a mão dupla entre leitura e psicanálise: enquanto a clínica oferece um lugar para que o sujeito fale, a leitura oferece repertório para que a fala encontre forma, para que a experiência seja narrável, editável, relida.
E quando a espiritualidade aparece na prateleira, não o faz como fuga, mas como camada. Para alguns, ela borda sentido nos intervalos que a razão não preenche. A saúde mental, quando enxerga as dimensões simbólicas da existência, aceita que nem tudo cabe em um manual e que o mistério, em doses, também sustenta.
No fim, é sempre sobre o gesto. Abrir um livro e aceitar ser lido por ele. Deitar-se no divã e aceitar ser escutado por si. A leitura, tal como a análise, não promete uma vida sem dor; promete outra relação com ela. Promete a chance de transformar sintoma em pergunta, angústia em narrativa, repetição em escolha. É um lento trabalho de lapidação, que às vezes se faz de sublinhados, às vezes de silêncios sublinhados.
Se me perguntassem o que uma estante assim ensina, eu diria: ela educa o olhar para a complexidade. Ensina a habitar paradoxos — entre razão e afeto, indivíduo e sociedade, ciência e mito, real e sonho. Ensina que cuidado não é atalho, é percurso. Que ler não é acumular, é atravessar e ser atravessado. Que saúde mental não é um estado fixo, mas uma dança de equilíbrios provisórios. E que a psicanálise é menos uma promessa de respostas e mais um convite para perguntas que melhoram a vida.
Talvez, no fim do dia, o que buscamos seja uma casa interna com janelas abertas. Um lugar com boa circulação de ar, onde possamos nos sentar conosco sem pressa. A estante, com seus volumes, miniaturas e símbolos, faz esse papel de varanda: ficamos ali, encostados no corrimão da linguagem, olhando a paisagem das nossas próprias camadas. E então acontece: uma frase nos encontra, uma ideia acende, um verso desarma. E seguimos — um pouco mais leves, um pouco mais lúcidos, um pouco mais disponíveis para ouvir o mundo e para nos escutarmos com mais ternura. Porque, se a maior viagem é para dentro, ler e analisar-se são as duas asas com que esse voo se torna possível.
Daniel Lima | Psicanalista | @daniellima.pe
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