A criatura de Frankenstein não é apenas um corpo costurado em laboratório. É, sobretudo, um ser sem lugar. Não pertence ao mundo dos homens, que a rejeitam pelo rosto disforme, nem ao mundo dos monstros, onde não há ninguém que se reconheça nela. Habita um espaço vazio, um entremeio, uma espécie de não lugar.
Essa condição nos provoca porque toca algo de muito humano. Quem nunca se sentiu estrangeiro, mesmo em sua própria casa, em sua própria cidade ou até em seu próprio corpo? A criatura apenas torna visível, de modo radical, a sensação de não pertencer — de estar sempre um pouco deslocado, sem morada simbólica.
Do ponto de vista existencialista, ela encarna o absurdo de que falava Camus: está aí, sem origem natural, sem genealogia que lhe dê raiz, vivendo sem justificativa. E, como em Sartre, seu corpo é sempre um corpo-para-o-outro: não é vivido em liberdade, mas devolvido como objeto de repulsa. Seu destino é ser olhada, mas nunca reconhecida.
No entanto, a criatura deseja. Deseja ternura, companhia, um par que lhe confirme a existência. Mas seu rosto, em vez de convocar o encontro, provoca medo. Não é acolhida como um “tu”, mas reduzida a um “isso”. Essa recusa mostra que a monstruosidade maior não está nela, mas na nossa incapacidade de enxergar o outro como sujeito.
A tragédia de Frankenstein, nesse sentido, não é apenas literária. É também uma parábola da condição humana. Somos lançados ao mundo sem garantias, mas a maioria encontra amparo na cultura, na família, na comunidade. A criatura não: foi criada sem origem e abandonada sem laço. Expulsa do mundo, experimenta a solidão mais radical.
Talvez por isso sua história resista ao tempo. Porque ela nos lembra que o pertencimento nunca é definitivo, e que basta um olhar de recusa para nos sentirmos estrangeiros. O desafio, então, não é temer o diferente, mas aprender a oferecer lugar ao outro — inclusive ao que em nós mesmos se mostra estranho, fragmentado e inquietante.
Daniel Lima | Psicanalista | @daniellima.pe
Comentários
Postar um comentário