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Os muitos descansos que sustentam a vida: um ensaio sobre a arte de pausar

Vivemos em uma época que celebra a velocidade. Tudo precisa ser respondido imediatamente, decidido depressa, produzido sem atraso. Nesse cenário, descansar parece quase um gesto de rebeldia — um retorno silencioso ao que somos quando ninguém nos exige nada. Mas descansar não é luxo, e muito menos preguiça. É, antes de tudo, uma necessidade constitutiva da vida psíquica, emocional e corporal. E talvez seja justamente por isso que a pausa, quando acontece, nos devolve algo essencial: o acesso àquilo que fomos perdendo no meio da pressa.   Costumamos pensar o descanso apenas como sono. No entanto, assim como somos seres complexos, feitos de camadas e ritmos próprios, também o descanso possui múltiplas formas. Cada uma delas toca uma dimensão da existência e restaura algo diferente em nós. Entender isso amplia nosso cuidado de si e torna a vida menos árida.   O descanso da mente é o primeiro deles. Ele se anuncia nos pequenos intervalos, quase invisíveis, que quebram a mecânica do...
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Entre o medo do novo e a coragem de recomeçar

  Há momentos na vida em que permanecemos onde não queremos mais estar. E isso não acontece por ingenuidade ou falta de percepção — pelo contrário, às vezes carregamos a consciência de que algo não nos faz bem muito antes de conseguirmos agir. Mas saber não basta. Entre o entendimento e o gesto existe um abismo feito de medo, de cansaço, de inseguranças acumuladas ao longo dos anos. Permanecer, mesmo no que dói, pode parecer mais suportável do que caminhar em direção ao que não conhecemos. O familiar oferece um tipo de abrigo, ainda que frágil: ali, ao menos, sabemos o que esperar. E esse “saber” funciona como uma armadura emocional que evita o confronto com a vertigem do novo.   É nesse intervalo entre o desconforto e a decisão que surgem justificativas que tentam organizar o caos interno. “É pelas crianças”, “é pela casa”, “é pela estabilidade” — são frases ditas com convicção, mas que muitas vezes escondem outras verdades mais profundas. Tomamos os outros como escudos porqu...

A tapeçaria digital e os fios soltos da conexão

É fascinante como nos prometem um mundo de infinitas conexões, não é mesmo? A palma da nossa mão pulsa com a energia de bilhões de informações, rostos e vozes. Quantas vezes, ao deslizar a tela, nos sentimos parte de algo grandioso, um fluir constante de ideias e experiências? Mas, e quando a tela se apaga? Ou quando nos vemos rodeados, em uma festa ou em um café, mas o olhar busca o brilho azul que já se tornou uma extensão de nós? Lembro-me de um entardecer, o pôr do sol pintando o céu com tons de laranja e roxo – uma cena de tirar o fôlego. Ao meu redor, celulares em riste, capturando o momento. Ninguém parecia realmente ver o sol se pôr, mas sim a versão digital dele que seria compartilhada. O que se perde nesse hiato entre a vivência e a representação? A sensação, por vezes, é de que construímos pontes virtuais tão rapidamente que esquecemos como andar sobre o solo firme de uma conversa olho no olho, onde as nuances da voz e a delicadeza de um gesto falam mais que mil emojis. A ir...

O não lugar da criatura

A criatura de Frankenstein não é apenas um corpo costurado em laboratório. É, sobretudo, um ser sem lugar. Não pertence ao mundo dos homens, que a rejeitam pelo rosto disforme, nem ao mundo dos monstros, onde não há ninguém que se reconheça nela. Habita um espaço vazio, um entremeio, uma espécie de não lugar. Essa condição nos provoca porque toca algo de muito humano. Quem nunca se sentiu estrangeiro, mesmo em sua própria casa, em sua própria cidade ou até em seu próprio corpo? A criatura apenas torna visível, de modo radical, a sensação de não pertencer — de estar sempre um pouco deslocado, sem morada simbólica. Do ponto de vista existencialista, ela encarna o absurdo de que falava Camus: está aí, sem origem natural, sem genealogia que lhe dê raiz, vivendo sem justificativa. E, como em Sartre, seu corpo é sempre um corpo-para-o-outro: não é vivido em liberdade, mas devolvido como objeto de repulsa. Seu destino é ser olhada, mas nunca reconhecida. No entanto, a criatura deseja. Deseja ...

A estante como mapa: percursos de leitura e análise

            Há estantes que são mapas do mundo interior. Não são apenas tábuas e lombadas: são topografias da alma. Diante de uma delas, ricamente povoada, sinto que cada livro magnetiza um pedaço do que somos — memórias, feridas, desejos, perguntas que insistem em voltar. E, quando um pequeno Freud sentado observa um divã em miniatura, a cena inteira se transforma numa metáfora: a leitura como análise, o leitor como analisando, a página como espaço clínico onde o segredo arrisca virar voz.            Ler é uma forma de respirar por dentro. É abrir janelas num quarto sem ar, deixar que entre um vento que carregue para longe o pó dos dias e traga um cheiro de mundo. Quando a vida aperta, um livro pode oferecer o tempo que nos falta: um tempo de espera, de elaboração, de nomeação. A saúde mental, tantas vezes capturada por urgências e rótulos, encontra na leitura um ritmo diferente, quase artesanato. Porque ler é aprender a escut...

Recomeços e espaços de escuta: uma travessia possível

Há momentos na vida em que os recomeços não são apenas escolhas práticas ou decisões racionais. Eles se impõem como uma urgência interna, um chamado para continuar sendo de outro modo. Iniciar um novo ciclo, como fiz ao abrir este consultório, é também um modo de escutar a mim mesmo — um gesto que reverbera o que, na psicanálise, tantas vezes testemunhamos nos pacientes: o desejo de ser. Thomas Ogden nos ensina que o encontro analítico verdadeiro só acontece quando analista e paciente conseguem cocriar uma experiência viva, num espaço onde se possa sonhar juntos, mesmo (ou especialmente) diante do indizível.           Este novo espaço não surgiu de um dia para o outro. Ele é o desdobramento de um percurso de escuta e cuidado que se estendeu por dez anos e quatro meses na Casa São José, em Venturosa-PE. Um tempo longo, marcado por muitas histórias, silêncios, afetos e transformações. Ali, fui sendo moldado pelo ofício, pela presença dos pacientes e pela experiênc...

Do reencontro ao desencontro: uma reflexão sobre os paradoxos da conexão.

O que é um reencontro senão um espelho do tempo? Quando o Instagram — esse arauto digital dos nossos laços — nos apresenta um rosto há muito guardado na memória, não é apenas um algoritmo que age, mas uma ironia do destino. A tecnologia, fria em sua lógica binária, torna-se mediadora do que há de mais humano: a nostalgia. Aquele instante de reconhecimento — "Será que é quem penso?" — revela um paradoxo fundamental: buscamos no outro a permanência, mas ele chega até nós transformado. A euforia que segue não é apenas pela redescoberta, mas pela ilusão de que podemos resgatar o que o tempo levou.  A alegria do reencontro é como um rio que retorna ao seu leito seco: traz consigo a promessa de vida, mas também a memória da ausência. Enviamos solicitações digitais como quem estende uma ponte sobre o abismo dos anos, acreditando que os afetos do passado podem ser reativados como conexões de Wi-Fi. No entanto, o que ocorre é mais complexo: a emoção, ao transbordar, muitas vezes se pe...